VI Domingo do Tempo Comum
>> domingo, 16 de fevereiro de 2014 –
HOMILIAS
(Eclo 15, 16-21; Sl
118(119); 1Cor 2, 6-10; Mt 5, 17-37)
“Não
julgueis que vim para abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas
sim para levá-los à perfeição” (Mt 5, 17).
Caros irmãos e irmãs, a liturgia deste
VI Domingo do Tempo Comum pretende voltar o nosso olhar religioso para a
essência da nossa fé, que não deve ser apenas moralista e ritualista, mas
sobretudo conduzida pelo Espirito, que santifica e dá vida a tudo aquilo que
acreditamos e praticamos. É nessa perspectiva que devemos ler e interpretar a
fala central de Jesus no Evangelho de hoje: “Não
julgueis que vim para abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas
sim para levá-los à perfeição” (Mt 5, 17).
Consideremos, antes de tudo, o contexto
em que Mateus escreve seu Evangelho. A comunidade dos primeiros cristãos era,
praticamente, toda constituída de judeus que se convertiam ao cristianismo, e
como é sabido, o judaísmo era, e ainda é, uma religião muito centrada em práticas
rituais, basta pensar na quantidade de preceitos e normas rituais ainda
presente entre eles.
No
contexto interno daquelas primeiras comunidades cristãs muito se discutia a
respeito da conservação ou não de rituais judaicos, tais como a circuncisão,
forma de purificar as mãos e ainda sobre alimentos permitidos ou não. Sem dúvida
alguma, os cristãos haviam entendido o sentido espiritual da fé dada e
transmitida por Jesus e queriam ser fiéis a ela. Mateus, como é sabido era um
legista, um doutor da lei, conhecia profundamente a Escritura e a interpretação
judaica. A lei era o compêndio de toda a sabedoria divina, revelada para se
tornar o único caminho de salvação humana e justificação perante Deus.
O homem sábio era justamente aquele que
cumpria à risca todos os preceitos da Lei, de fato, toda a Escritura era
resumida à Lei e aos Profetas. A ideia de fundo fundamental é de que a Deus
somente se podia chegar através da observância da lei religiosa, que era também
civil, porque era por meio dela que Deus conduzia o seu povo escolhido.
Nessa perspectiva é que começamos a
compreender a fala de Jesus, e o fazemos por Paulo, já que ninguém era mais
autorizado do que ele pra interpretar a lei judaica, já que foi escolhido pelo
próprio Jesus na estrada de Damasco, sendo ele judeu e exímio conhecedor da
Escritura, foi o primeiro também a substituir a Lei por Cristo, porque entendeu
muito rápido o sentido de seu chamado e de sua missão como apóstolo de Jesus,
tinha muito presente que era o Espirito Santo o responsável por dar o
verdadeiro sentido de toda prática ritual e moral da fé, “porque o Espirito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus” (1Cor 2,
10).
A lei e a prática
ritual estavam a serviço da educação espiritual do povo escolhido por Deus. Era
justamente através da vivência prática da fé que as pessoas eram chamadas à
experiência íntima com o Senhor, como de fato tantos conseguiram. Ainda que a
Escritura nos tenha revelado diversos pecados dos grandes patriarcas e
personagens do Antigo Testamento, é inegável que tantos alcançaram a intimidade
com Deus, citemos apenas alguns: Abraão, Moises, Noé, Davi. Foram realmente
homens cheios do espírito de Deus, jamais impecáveis, porém, conhecedores dos
planos divinos porque deixaram que a lei e a verdadeira sabedoria fossem
impressas em seus corações.
É nesse sentido então que entendemos o
que Jesus quer dizer, “Não julgueis que
vim para abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los
à perfeição” (Mt 5, 17), pois se tomarmos ao pé letra do evangelho de hoje é,
sem duvida, uma exigência tremenda, mas se a interpretamos levando em
consideração todo esse contexto que acabamos de refletir, entendemos que Jesus
quer unir a lei à intenção do coração. Sim! É justamente nessa perspectiva que
devemos interpretar. A prática das leis e rituais são importantíssimas na vivência
de uma fé autêntica, mas somente podem educar o nosso coração e o dispor para a
verdadeira experiência com Deus, se unimos à nossa prática a intenção reta e
sincera de realmente penetrar a “Sabedoria
de Deus, misteriosa e secreta, que Deus predestinou antes de existir o tempo,
para a nossa glória” (1Cor 2,7) e não para a nossa condenação. Uma Sabedoria
que parecia um tanto quanto inacessível, ou ao menos esquecida, já que “nenhuma autoridade deste mundo conheceu,
pois se a houvessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória” (1Cor
2,8).
De fato, nos
espanta pensar, como os contemporâneos de Jesus, o puderam crucificar, tendo
visto e ouvido tantos milagres realizados por Ele? Quem nunca se questionou
isso? Porém, meus caros amigos, não parece tão difícil entender se olhamos para
o nosso contexto religioso atual, onde tendo já conhecido e experimentado o
amor de Deus, ainda nos deparamos muito com tal prática de fé eminentemente
ritualista e moralizante no pior sentido do termo.
Quantas pessoas, autoridades
religiosas, e cristãos considerados de “caminhada” se perdem num espírito de
revolta ou de mera acusação de maus costumes que os tornam amargos e difíceis
de suportar. São, sem dúvida, verdadeiros profetas das trevas, ainda que muitas
vezes digam a verdade, suas vidas são permeadas de tamanho orgulho, malícia e espírito
de superioridade, que não nos tocam, convencem ou arrastam, porque não
conseguimos enxergar o essencial neles, o Cristo vivo e amoroso que nos chama à
conversão e a uma felicidade autêntica que nos tira da prostração do pecado e
do “ensimesmamento” egoísta que nos fecha ao verdadeiro amor e apostolado.
A liturgia de hoje nos questiona
profundamente sobre como estamos vivendo e “praticando” a nossa fé. Está muito
claro que não basta cumprir os mandamentos, se de fato ainda não aprendemos a
amar o que eles nos pedem, “digo-vos,
pois, se a vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não
entrareis no Reino dos céus” (Mt 5,20).
Então já não basta
mais se contentar e sentir-nos bons cristãos porque não faltamos à santa missa
aos domingos e porque nos confessamos uma ou duas vezes por ano, se tudo isso não
nos leva a amar a Deus sobre todas as coisas ao próximo como a nós mesmos. Que
tipo de religião é esta? Se nos esforçamos por rezar todos os dias, mas isso não
nos leva a olhar o pecador e a nós mesmos como Cristo, ou seja, com amor, de
que nos adianta?
Me lembro sempre do testemunho de um
padre muito experiente e sábio, Pe. Francisco Faus, que num retiro para
seminaristas, nos dizia, que um dia quando fôssemos padres, nos cansaríamos de
atender pessoas feridas e que às vezes, ficaram 20, 30 anos afastadas da
confissão, porque tiveram uma experiência ruim no confessionário, com sacerdotes
que ao invés de transmitir-lhes uma palavra que iluminasse e apontasse um novo
percurso de vida, perdiam o tempo acusando, bem a modo satânico, já que é ele quem
recebe o nome de acusador.
Já é tempo de corrigir com amor, de
mostrar com a vida que a experiência autêntica de fé somente é possível quando
nossa prática ritual, nossa experiência com Deus na liturgia e na oração nos
levam a um verdadeiro encontro com Cristo, que nos corrige, sem dúvida, mas com
muito amor, mostrando sempre que “se o
nosso coração nos censura, Deus é muito maior que o nosso coração” (1Jo 3, 20)
de fato, quando é “pois Ele
quem abre a ferida, Ele mesmo a trata; Ele fere, mas com suas próprias mãos
pode curar” (cfr. Jo 5, 18).
Não tenho dúvidas que nosso contra testemunho é
hoje o que mais afasta as pessoas da Igreja e da fé. Como bem disse o Papa
Francisco, “é muito fácil um cristão perder a fé devido a soberba e às paixões,
e muito fácil um pagão buscar a Cristo e o
encontrar pela sua humildade e sinceridade”. O mundo tem direito de ver Cristo nos cristãos, ou seja, em cada um de nós.
Recentemente, um amigo sacerdote da
faculdade me contou sobre um senhor a quem atendeu espiritualmente, que relatou
que o padre lhe negou uma absolvição porque não havia levado um exame de
consciência escrito, e ainda o mandou procurar na internet um bom exame de
consciência e depois voltar. O detalhe é que este senhor não sabia mexer com
computador e era um recém convertido! Eu sempre me pergunto onde esses
confessores aprenderam a confessar e se, de fato, fazem eles o mesmo quando se
confessam!
Amados irmãos e irmãs, busquemos a
verdadeira religião, aquela que nos leva a contemplar de fato o Deus do amor e
do perdão, que nos convence de nossos pecados, mas sempre nos mostrando que a
verdadeira felicidade consiste em viver retamente segundo o que Ele tem para nós.
De fato, Ele nos prepara algo maravilhoso, uma recompensa insondável, “coisas que os olhos não viram, nem os
ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem
preparado para aqueles que o amam” (1Cor 2, 10).
Creio que temos um
bom material de exame sobre nossa prática religiosa, já não nos basta
simplesmente não matar, pois “todo aquele
que se irar contra seu irmão, será castigado pelos juízes” (Mt 5, 22), já não
nos basta dar uma boa oferta, antes “deixa
lá tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconcialiar-te com teu irmão; só
então vem fazer tua oferta” (Mt 5, 24), já não basta não cometer adultério,
pois “todo aquele que lançar um olhar de cobiça
para uma mulher, já adulterou em seu coração.” (Mt 5, 28) e assim segue o
texto do evangelho.
Se olhamos tudo isso apenas em sentido
estrito, se torna um fardo que nenhum de nós pode suportar, mas se entendemos
que Jesus nos quer voltar para a prática, primeiramente interior e depois
exterior das normas e rituais, então tudo se torna para nós a Lei da liberdade da qual nos fala o apóstolo
São Tiago (cfr. Tg 1, 25b).
Por fim peçamos ao Senhor, de todo o
coração, e apresentemos a Ele no ofertório, nosso desejo sincero e reto de dar espírito
às nossa obras e, sobretudo, de a Ele voltarmos o nosso coração.
“Feliz
o homem que observa seus preceitos e de todo o coração procura a Deus” (Sl 118),
queremos sem dúvida alguma, guardar os mandamentos de Deus, mas sobretudo
devemos permitir, através da retidão de intenção e da graça de Deus, que eles
nos guardem, afinal “se quiseres guardar
os mandamentos, e praticar fielmente o que é agradável a Deus, eles te
guardarão” (Eclo 15, 16).