Sêneca - Cartas Morais a Lucílio (XXX – XXXXI)

(Resumo)

As Cartas a Lucílio (Epistulae morales ad lucilium) são consideradas por muitos comentadores como principal obra de Sêneca, ou aquela demonstra com mais agudeza o seu pensamento, pois foi escrita já no final de sua vida mostrando o amadurecimento de suas reflexões filosóficas e em plena posse dos seus recursos como pensador da corrente estóica, ainda que que algumas peculiaridades heterodoxas a esta corrente filosófica, misturada a elementos epicuritas. As cartas revelam uma temática estremamente atual dada a intemporalidade dos temas abordados e a pertinência dos valores morais aos quais o autor chama à reflexão. A obra apresenta caráter essencialmente ético, é menos especulativa e mais prática, analisa situações concretas da vida humana e da ordem natural seguindo um estilo sapiencial com certa dose de ironia, como se pode notar na crítica satírica a determinados vícios da época.1
Das ideias principais extraídas da leitura, gostaria de destacar a visão de felicidade do autor, que parece ser uma “terapia da emoção e do desejo”, que consiste em viver virtude em grau máximo, em adaptar-se à natureza para manter um equilíbrio que deixe o homem salvo das vaidades da fortuna e dos impulsos do desejo que obscurecem a liberdade. Assim a liberdade caracteriza-se como a imperturbabilidade do espírito diante dos encômodos da vida (ataraxia)2 e de modo especial do destino, que é uma realidade necessária a qual todos estão sujeitos, aqueles que o aceitam são livres, pois não se deixam se levar pelo medo da dor e mesmo da morte.
Outra meta da vida moral apresentada pelo autor é a Sabedoria, que seria o único bem imortal que pode ser possuído pelos mortais e é justamente esta sabedoria que conduzirá o homem a viver segundo a natureza, deixando-se guiar por suas leis e exemplos.
A obra apresenta ainda uma visão antropólica interessante, fala de alma humana, mas como parte do corpo, ou como uma espécie de espírito corporal, o que nos permite classificar o autor como materialista. As cartas falam de Deus e mesmo de uma vida após a morte, de pecado, o que faz de Sêneca um estóico um tanto heterodoxo e, segundo o professor Gahl, demonstra também uma certa influência do cristianismo, ainda que sua concepção de “vida” após a morte e de pecado seja diversa à do cristianismo. Tal peculiriade no pensamento estóico de Sêneca, dá um ecletismo de caráter moralista, preocupando-se com a filosofia enquanto ensinamento e consolo para a vida, como mais tarde fará também tantos outros filósofos cristãos, em especial Boécio.3
Sêneca aborda ainda diversas questões de cunho ético-antropológico e pode ser considerado um otimista, pois ssinala que as pessoas trazem consigo a semente de uma vida honesta, embora os bons exemplos exerçam um papel essencial na adoção das virtudes4, pois tantas vezes a vontade é fraca ou deficiente e o homem possui predisposição antural para o bem ou para o mal, daí a importância da educação moral.
O autor apresenta um programa de vida de heroísmo passivo, que exige uma reformulação da mente a fim de que o homem não se deixe impressionar com o horror da dores, da miséria e até mesmo da morte, que aliás ocupa um papel singular nas Cart as Morais. A morte não é um bem e nem um mal, pode tornar-se uma libertação quando as circunstâncias da vida condenam o homem a uma escravidão incompatível com a liberdade, “(...) A morte não comporta nenhum desconforto,(…) se tanto desejas uma vida mais larga, pensa que nenhuma das coisas que desaparecem da vista, não se iliminam. Acabam sua carreira, mas não desaparecem e a morte, que tanto tememos e fugimos, interrompe a vid a, mas não a cancela.5 Assim fica aberto o caminho para que o homem deixe a vida (possibilidade do suicídio) e nada o obriga a viver na miséria ou no cativeiro, entendidos aqui em sentido mais amplo, não meramente físico.
A obra apresenta ainda, tantas outras reflexões que podem servir de objeto de reflexão e mesmo fonte de inspiranção na reflexão filosófica atual. Guardando-se os paralelos, está presente um certo conceito humanístico e mesmo personalista, quando afirma por exemplo que um homem não pode causar dano a outro, pois isto é irracional e vai contra a própria essência da natureza. Muitos vêem nessa afirmação e outras semelhantes uma certa influência no pensamento de Kant e em seu postulado moral. Discussões a parte, o que fica evidente, contudo, é a inegável atualidade do pensamento de Sêneca, presente até mesmo em pensamentos de índole budista.
Muitas observações e conclusões presentes nesta obra podem ser aplicadas à inquietudes do mundo hodierno, como a busca desordenada pelo prazer utilitalista, a perda constante do sentido da vida que culmina em depressão, o erotismo exacerbado. Sêneca escreveu diversas máximas sobre a pureza da vida, elevação do espírito humano, entusiasmo pela virtude entre outros. A obra representa não somente sua esperiência de vida como também reflexões profundas sobre os paradoxos da vida humana.

A obra de Sêneca certamente apresenta muitos pontos que, com a devida correção, podem trazer luzes ao pensamento cristão, contudo, devemos ponderar que apresenta um otimismo moderado em relação a natureza humana, apresenta uma felicidade com a morte, porém sem a concepção de paraíso, não apresenta uma ideia clara de esperança, ainda que permita uma abertura a ela, além de propor o sufocamento das paixões e repressão ao medos sem um sentido e meio sobrenaturais para tanto.

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1Cfr. Carta XXXIX.
2Cfr. Cartas XXXI, XXXVI, entre outra.
3Obs. A Carta XXX permite certa relação com De Consolatio Philosophiae de Boécio.
4Carta XXXV.
5Carta XXXVI

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