São Tomás de Aquino - Questões Disputadas Sobre a Potência de Deus (q.1 a. 1-3)
>> quinta-feira, 28 de novembro de 2013 –
Filo Medieval
Questiones
Disputatae de Potentia Dei
De Potentia é classificada geralmente no terceiro dos quatro grupos das
obras de Santo Tomás, ou seja, o das “questões disputadas” (Sobre a Verdade,
Sobre a Alma, Sobre o Mal, etc). No primeiro grupo estariam os “comentários” (à
Lógica, à Física, à Ética de Aristóteles, à Sagrada Escritura, etc), no segundo
grupo as “sumas” (Contra os Gentios, Teológica) e no quarto grupo os
“opúsculos” (Da Unidade do intelecto contra os averroístas e Da Eternidade do
Mundo). Um detalhe interessante é que esta obra foi escrita em Roma, exatamente
em Santa Sabina, é dividida em 7 artigos, bem ao método tradicional e sistemático
de Santo Tomás, anunciando o tema ao qual se discute, os argumentos contrários à
sua tese, respondendo um por um, e apresentando sua conclusão.
No proêmio da obra o doutor angélico anuncia
os temas a serem estudados, a saber: se há potência em Deus; se a potência de
Deus é infinita; se o que é impossível à natureza o é também a Deus; se o juízo
acerca de algo ser possível ou impossível é conforme as causas inferiores ou
superiores; se Deus pode fazer o que não faz e deixar de fazer o que faz; se
Deus pode fazer o que os outros fazem, como pecar, andar etc; se Deus é dito
onipotente. Neste resumo trataremos dos 3 primeiros artigos.
A primeira vista o que podemos
ressaltar é como S. Tomás é agudo pesquisador e respeitoso comentador,
recolhendo os principais argumentos do tema ao qual se propõe a refletir seja
da filosofia como da teologia precedente e contemporânea a si. Na obra cita
claramente Aristóteles, S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, S. Anselmo,
Dionísio, S. Hilário, Pedro Lombardo, como também a Sagrada Escritura.
Sobre a primeira questão se há ou não potência em Deus,
conclui que sim, mas explica como isso deve ser compreendido. Um dos principais
argumentos contrários, parte do princípio que nada em Deus deve ser contra a
sua simplicidade (Unum Simpliciter) e
que age por essência, o que significa afirmar que não deve agir por uma
potência que adicione algo à sua essência, ao menos quanto ao modo de
significar (cfr. q.1 a5), porém responde explicando que a noção de potência em Deus não suprime nem a sua
simplicidade nem a sua primazia, pois não se coloca como algo acrescido à
essência. O erro estaria também no argumento baseado numa concepção que
pressupõe um certo “movimento” entre o ato e a potência, a partir do qual todo
ato deve ser precedido de uma potência, assim se a Deus compete maximamente
operar, lhe deveria ser atribuída também uma máxima potência.
O Aquinate resolve a questão
explicando que o ato deve ser entendido duplamente: ato primeiro que seria a forma
e ato segundo que é a operação, sendo que o segundo foi
atribuído pela compreensão comum dos homens à operação e secundariamente foi compreendido
como forma enquanto princípio e fim da operação. Utilizando a analogia afirma
que algo semelhante ocorre à potência, que também é dupla, ativa e passiva, sendo
que a potência ativa corresponde ao ato
(operação) e a potência passiva corresponde ao ato primeiro que é a forma. Assim, como aquilo que padece é em
razão da potência passiva, da mesma forma aquilo que opera é razão do ato
primeiro que é a forma. Como Deus é ato puro e primeiro “Lhe corresponde maximamente operar e difundir sua similitude nas outras
coisas e por isso Lhe convém maximamente a potência ativa”, logo se deve
atribuir a Deus a “operação em razão da
última completude mas não em razão daquilo ao que a operação se direciona.”
Portanto a potência que é atribuída a
Deus deve ser entendida em razão do que permanece e é seu princípio e não em
razão que se aperfeiçoa pela ação.
Resolvida a questão anterior, no
segundo artigo trata de explicar se a potência de Deus é infinita ou não, conclui
que sim, porém, como no artigo anterior, isso deve ser entendido da maneira
correta. Seus principais argumentos são extraídos de Damasceno, Hilário e
principalmente de Aristóteles. A argumentação contrária à sua parte de uma
concepção de infinitude como algo não limitado pelo tempo, espaço e compreensão.
O Aquinate usa um raciocínio semelhante ao da questão anterior, afirmando que o
infinito deve ser compreendido em dois sentidos: em sentido privativo, ou seja,
de algo que deveria por natureza ter limite e não tem; e em sentido negativo
(de negação), ou seja, de algo que não possui fim. A primeira forma somente se
encontra na quantidade e Deus não possui quantidade porque não possui extensão
e também porque privação indica imperfeição, o que de modo algum compete a
Deus. A segunda forma sim convém a Deus, enquanto todas as perfeições existem
nEle mesmo e não é limitado por algo.
Quanto ao terceiro artigo se as
coisas que são impossíveis à natureza o são também a Deus, conclui também que
sim e trata de explicitar em que sentido isso deve ser compreendido. Os principais
argumentos contrários à sua argumentação são extraídos de S. Agostinho (ao qual
procurará na sua argumentação, dar uma interpretação justa) e basicamente do
raciocínio que toda potência que pode fazer uma coisa e outra não seria
limitada. Na sua argumentação recorre a Lc 1,37, S. Ambrósio e sobretudo a
Aristóteles.
Seu raciocínio é basicamente o seguinte,
partindo do senso comum, se diz que uma coisa é impossível em três maneiras:
por defeito da potência ativa; por algo que resista ou impeça a ação; por um
motivo ou causa que não permita o término da ação. Assim no que se refere à
primeira e à segunda maneira, Deus pode fazer aquilo que a natureza não pode
porque sua potência que é infinita (no sentido exposto na segunda questão) não
padece de nenhum defeito e também porque não há matéria que não possa
livremente mudar. No que se refere a terceira maneira “Deus não pode fazê-las porque é maximamente ato e principalmente ser.
Por isso sua ação não pode dirigir-se senão principalmente ao ente e não consequentemente
ao não ente.” Assim não pode fazer que a afirmação e a negação sejam
simultaneamente verdade. Portanto não se pode dizer que Deus não pode fazer
algo por defeito de sua potência e sim por causa do defeito de possibilidade
daquilo que padece de caráter do possível.
Em resumo, o doutor angélico
explica que S. Agostinho quando afirma que Deus não pode fazer o que a natureza
não faz quando Ele mesmo age habitualmente contra o curso normal da natureza,
quer dizer que Deus não faz as coisas contrárias à Natureza, mas de sua natureza, uma vez que Ele mesmo
é o criador e ordenador dela. Assim se responde por exemplo como são e porquê
possíveis os milagres.
Portanto, por que Deus pode
fazer enxergar um cego? A resposta segundo seu raciocínio, é porque o cego é um
ser humano e a natureza humana possui a capacidade de enxergar e Deus tem poder
sobre essa natureza humana. E por que Deus pode fazer um homem andar sobre o
mar, se a natureza humana não possui esta possibilidade? A Resposta é porque
Deus é o autor e ordenador da própria natureza enquanto tal, logo pode
alterá-la e pode alterá-la porque age a partir de si e não a partir da
natureza. Isto vem expresso nas palavras de S. Tomás.
Uma forma interessante que pode
ajudar bastante o estudo deste texto é começar lendo o tema proposto e andar
diretamente à conclusão, posteriormente as objeções contrárias. S. Tomás
resolve boa parte das dificuldades referentes ao tema proposto simplesmente
explicando com precisão o que realmente significam.
O que podemos extrair desses
três primeiros artigos de De Potentia, além dos argumentos solucionados pelos
autor, é a sua forma muito humana de fazer filosofia, dialogando com os
pensadores, sempre de forma mui respeitosa, confrontando e superando
dificuldades. Fazendo sempre uso da analogia e partindo sempre do real, do
senso comum para se chegar às soluções mais transcendentes e profundas.