São Tomás de Aquino - Questões Disputadas Sobre a Potência de Deus (q.1 a. 1-3)

Questiones Disputatae de Potentia Dei 


  De Potentia é classificada geralmente no terceiro dos quatro grupos das obras de Santo Tomás, ou seja, o das “questões disputadas” (Sobre a Verdade, Sobre a Alma, Sobre o Mal, etc). No primeiro grupo estariam os “comentários” (à Lógica, à Física, à Ética de Aristóteles, à Sagrada Escritura, etc), no segundo grupo as “sumas” (Contra os Gentios, Teológica) e no quarto grupo os “opúsculos” (Da Unidade do intelecto contra os averroístas e Da Eternidade do Mundo). Um detalhe interessante é que esta obra foi escrita em Roma, exatamente em Santa Sabina, é dividida em 7 artigos, bem ao método tradicional e sistemático de Santo Tomás, anunciando o tema ao qual se discute, os argumentos contrários à sua tese, respondendo um por um, e apresentando sua conclusão.
No proêmio da obra o doutor angélico anuncia os temas a serem estudados, a saber: se há potência em Deus; se a potência de Deus é infinita; se o que é impossível à natureza o é também a Deus; se o juízo acerca de algo ser possível ou impossível é conforme as causas inferiores ou superiores; se Deus pode fazer o que não faz e deixar de fazer o que faz; se Deus pode fazer o que os outros fazem, como pecar, andar etc; se Deus é dito onipotente. Neste resumo trataremos dos 3 primeiros artigos.
A primeira vista o que podemos ressaltar é como S. Tomás é agudo pesquisador e respeitoso comentador, recolhendo os principais argumentos do tema ao qual se propõe a refletir seja da filosofia como da teologia precedente e contemporânea a si. Na obra cita claramente Aristóteles, S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, S. Anselmo, Dionísio, S. Hilário, Pedro Lombardo, como também a Sagrada Escritura.
Sobre a primeira questão se há ou não potência em Deus, conclui que sim, mas explica como isso deve ser compreendido. Um dos principais argumentos contrários, parte do princípio que nada em Deus deve ser contra a sua simplicidade (Unum Simpliciter) e que age por essência, o que significa afirmar que não deve agir por uma potência que adicione algo à sua essência, ao menos quanto ao modo de significar (cfr. q.1 a5), porém responde explicando que a noção de potência em Deus não suprime nem a sua simplicidade nem a sua primazia, pois não se coloca como algo acrescido à essência. O erro estaria também no argumento baseado numa concepção que pressupõe um certo “movimento” entre o ato e a potência, a partir do qual todo ato deve ser precedido de uma potência, assim se a Deus compete maximamente operar, lhe deveria ser atribuída também uma máxima potência.
O Aquinate resolve a questão explicando que o ato deve ser entendido duplamente: ato primeiro que seria a forma e ato segundo que é a operação, sendo que o segundo foi atribuído pela compreensão comum dos homens à operação e secundariamente foi compreendido como forma enquanto princípio e fim da operação. Utilizando a analogia afirma que algo semelhante ocorre à potência, que também é dupla, ativa e passiva, sendo que a potência ativa corresponde ao ato (operação) e a potência passiva corresponde ao ato primeiro que é a forma. Assim, como aquilo que padece é em razão da potência passiva, da mesma forma aquilo que opera é razão do ato primeiro que é a forma. Como Deus é ato puro e primeiro “Lhe corresponde maximamente operar e difundir sua similitude nas outras coisas e por isso Lhe convém maximamente a potência ativa”, logo se deve atribuir a Deus a “operação em razão da última completude mas não em razão daquilo ao que a operação se direciona.” Portanto a potência que é atribuída a Deus deve ser entendida em razão do que permanece e é seu princípio e não em razão que se aperfeiçoa pela ação.
Resolvida a questão anterior, no segundo artigo trata de explicar se a potência de Deus é infinita ou não, conclui que sim, porém, como no artigo anterior, isso deve ser entendido da maneira correta. Seus principais argumentos são extraídos de Damasceno, Hilário e principalmente de Aristóteles. A argumentação contrária à sua parte de uma concepção de infinitude como algo não limitado pelo tempo, espaço e compreensão. O Aquinate usa um raciocínio semelhante ao da questão anterior, afirmando que o infinito deve ser compreendido em dois sentidos: em sentido privativo, ou seja, de algo que deveria por natureza ter limite e não tem; e em sentido negativo (de negação), ou seja, de algo que não possui fim. A primeira forma somente se encontra na quantidade e Deus não possui quantidade porque não possui extensão e também porque privação indica imperfeição, o que de modo algum compete a Deus. A segunda forma sim convém a Deus, enquanto todas as perfeições existem nEle mesmo e não é limitado por algo.
Quanto ao terceiro artigo se as coisas que são impossíveis à natureza o são também a Deus, conclui também que sim e trata de explicitar em que sentido isso deve ser compreendido. Os principais argumentos contrários à sua argumentação são extraídos de S. Agostinho (ao qual procurará na sua argumentação, dar uma interpretação justa) e basicamente do raciocínio que toda potência que pode fazer uma coisa e outra não seria limitada. Na sua argumentação recorre a Lc 1,37, S. Ambrósio e sobretudo a Aristóteles.
 Seu raciocínio é basicamente o seguinte, partindo do senso comum, se diz que uma coisa é impossível em três maneiras: por defeito da potência ativa; por algo que resista ou impeça a ação; por um motivo ou causa que não permita o término da ação. Assim no que se refere à primeira e à segunda maneira, Deus pode fazer aquilo que a natureza não pode porque sua potência que é infinita (no sentido exposto na segunda questão) não padece de nenhum defeito e também porque não há matéria que não possa livremente mudar. No que se refere a terceira maneira “Deus não pode fazê-las porque é maximamente ato e principalmente ser. Por isso sua ação não pode dirigir-se senão principalmente ao ente e não consequentemente ao não ente.” Assim não pode fazer que a afirmação e a negação sejam simultaneamente verdade. Portanto não se pode dizer que Deus não pode fazer algo por defeito de sua potência e sim por causa do defeito de possibilidade daquilo que padece de caráter do possível.
Em resumo, o doutor angélico explica que S. Agostinho quando afirma que Deus não pode fazer o que a natureza não faz quando Ele mesmo age habitualmente contra o curso normal da natureza, quer dizer que Deus não faz as coisas contrárias à Natureza, mas de sua natureza, uma vez que Ele mesmo é o criador e ordenador dela. Assim se responde por exemplo como são e porquê possíveis os milagres.
Portanto, por que Deus pode fazer enxergar um cego? A resposta segundo seu raciocínio, é porque o cego é um ser humano e a natureza humana possui a capacidade de enxergar e Deus tem poder sobre essa natureza humana. E por que Deus pode fazer um homem andar sobre o mar, se a natureza humana não possui esta possibilidade? A Resposta é porque Deus é o autor e ordenador da própria natureza enquanto tal, logo pode alterá-la e pode alterá-la porque age a partir de si e não a partir da natureza. Isto vem expresso nas palavras de S. Tomás.
Uma forma interessante que pode ajudar bastante o estudo deste texto é começar lendo o tema proposto e andar diretamente à conclusão, posteriormente as objeções contrárias. S. Tomás resolve boa parte das dificuldades referentes ao tema proposto simplesmente explicando com precisão o que realmente significam.
O que podemos extrair desses três primeiros artigos de De Potentia, além dos argumentos solucionados pelos autor, é a sua forma muito humana de fazer filosofia, dialogando com os pensadores, sempre de forma mui respeitosa, confrontando e superando dificuldades. Fazendo sempre uso da analogia e partindo sempre do real, do senso comum para se chegar às soluções mais transcendentes e profundas. 

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