Kierkegaard - Doença até a morte (I)
>> sexta-feira, 28 de junho de 2013 –
Filo Contemporânea
RESUMO I
Antes de adentrar o
conteúdo de “Doença até a morte”, convém delinear alguns traços biográficos de Kierkegaard,
uma vez que influenciam diretamente seu pensamento, e em especial esta obra.
Suas inquietações e angústias, frutos de sua experiência existencial estão
profundamente expressas nas páginas desta obra, principalmente a relação entre
a angústia e o sofrimento que manteve com o cristianismo, herança familiar, uma
vez que foi educado no protestantismo dinamarquês e sob seus rígidos
princípios.
O autor talvez teria sido um
pastor, caso não tivesse sido um estudante indisciplinado e boêmio. Após a morte
de seu pai e especialmente após conhecer Regina Oslen, da qual foi noivo em
1840, sua forma de vida e consequentemente seu pensamento tornam-se mais
profundos, partindo para uma reflexão existencial e religiosa. Após concluir o
curso de teologia e apresentar sua tese de doutorado sua vida muda
radicalmente. Ao invés de se tornar pastor e pai de família, escolhe viver na
solidão, afim de “vivenciar a sua fé”, viaja para a Alemanha em 1841, onde foi
aluno de Schelling. Escreve diversos textos na tentativa de explicar a si
mesmo, e talvez a Regina, os paradoxos da existência religiosa. Sua reflexão
parte do exame concreto do homem religioso e historicamente situado. Assim, sua
filosofia assume um caráter de auto-reflexão da posição do indivíduo diante da verdade
cristã. Suas obras o fez entrar em conflito com a Igreja oficial da Dinamarca.
Em 1849, publica sua Obra principal “Doença mortal”, cujo conteúdo pretendemos
analisar neste resumo, e que exprime, em suma, seu pensamento daquele que é
considerado o pai do existencialismo. Ao invés de buscar uma verdade que
explique todo o universo, busca compreender a verdade que sirva para cada
indivíduo e se adapte às escolhas de cada que formam o seu “eu”.
Já no prefácio da obra, o autor
anuncia o que pretende propriamente refletir: “as palavras do médico à
cabeceira do enfermo”. Coloca o desespero humano no centro da sua reflexão
filosófica a fim de chamar atenção para o problema existencial, apresentando
uma visão antropológica a partir do cristianismo, como ser dotado de corpo e
espírito.
Nestas primeira páginas de sua
obra, Kierkegaard considera que o principal papel do saber filosófico é “ousarmos
ser nós próprios, ousarmos ser indivíduos, não um qualquer, mas este que somos,
só a face de Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua
responsabilidade”.[1]
Nessas palavras fica claro o projeto do autor, alcançar a salvação dos enfermos
através da reflexão que os liberte da doença mortal.
O autor traz à tona a seguinte
dialética: o desespero é a doença e não o remédio, morrer para o mundo é o
remédio. Para ele o desespero é uma característica intrínseca a todo ser
humano, seja ele consciente disso ou não. Enquanto desesperado, o homem morre
sempre aos poucos e, quando este homem é cristão, morre de uma só vez, o que o
liberta para ser ele mesmo.
Na primeira parte da obra
encontramos ainda a concepção de homem do autor, que tem como pressuposto não o
princípio de não contradição, nem mesmo apresenta uma visão hilemórfica como
Santo Tomás, antes, parte da dialética. Sua visão antropólica adquire
particular relevância para a compreensão do texto na medida em que a obra visa
demonstrar que a salvação significa justamente aprender o remédio para o
desespero humano (doença mortal). O início do capítulo I apresenta sua
definição do homem como espírito e o espírito como sendo o “eu”, apresenta
ainda o homem como síntese entre o finito e o infinito, temporal e eterno,
liberdade e necessidade, pois que “o eu é uma relação, que não se estabelece
com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria (…) ele consiste no
orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é relação em
si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela
tem de si própria depois de estabelecida”[2].
O desespero consiste justamente
em ser e viver diferentemente daquilo que realmente se é, ou seja, de
viver de modo diverso à vontade daquele que lhe deu o “eu”, Deus, causando
assim uma crise de relação, que em última análise é a causa do desespero.
Quanto mais se busca aplacar esse desespero vivendo para fora, para um mundo
que busca sempre trazer novidades, tanto mais se aprofunda em tal desespero.
Aqui podemos fazer uma analogia com o chamado divertissimant de Pascal.
A única via de saída desse
movimento de desespero é buscar restabelecer a ordem com aquele que lhe deu o
“eu” e morrer para o mundo. Mas no que consistiria essa morte? “visto que na
linguagem humana a morte é o fim de tudo, costuma-se dizer, que enquanto há
vida há esperança. Mas para o cristão, a morte de modo algum é o fim de tudo, e
nem sequer um simples episódio perdido na realidade única que é a vida eterna;
ela implica para nós infinitamente mais esperança do que a vida comporta, mesmo
transbordante de saúde e força”[3].
Nas páginas seguintes
Kierkegaard procurará responder as seguintes questões: como se dá a
aprendizagem que constitui o cristão? O que exatamente faz
com que o verdadeiro cristão aprenda o que é o desespero humano (doença
mortal), mas não seja sucumbido por ele?
A partir da leitura dos capítulos seguintes seremos capazes de responder a
essas perguntas na perspectiva do autor.